Futebol nunca mais foi o mesmo depois de 15 de abril de 1989




O futebol mundial nunca mais foi o mesmo depois de 15 de abril de 1989, data da terrível tragédia de Hillsborough, em Sheffield, quando 96 torcedores do Liverpool morreram esmagados, pisoteados e sufocados em um dia de superlotação e irresponsabilidade das autoridades responsáveis pela partida entre os Reds e o Nottingham Forest, pela FA Cup, no estádio do Sheffield Wednesday. As imagens de torcedores se espremendo nas grades correu o mundo e medidas sérias precisavam ser tomadas.

O fato foi a gota d'água de uma década marcada pela violência nos estádios ingleses, pela proliferação de holligans e por vários outros problemas espalhados pelos já centenários e históricos templos do futebol da terra da rainha. Na época, os clubes ingleses já cumpriam uma punição continental motivada pela participação de torcedores do Liverpool na final da então Copa dos Campeões em Heysel, na Bélgica, em 1985, quando 39 torcedores da Juventus morreram depois de um tumulto nas arquibancadas. A punição foi exemplar. Todos clubes ingleses ficaram de fora das competições europeias por cinco temporadas - o Liverpool, seis. 

Uma das imagens fortes do estádio de Hillsborough em abril de 1989

O acúmulo de encrencas resultou na criação do Relatório Taylor, que, entre diversas outras recomendações, em nome da segurança, assentos em todos os locais no estádio, a extinção de alambrados (o gramado seria uma eventual rota de fuga em caso de algum problema), a consequente reformulação de todos os estádios, ninguém de pé e, claro, rigorosas punições a quem aprontar, com julgamentos rápidos e multas pesadas. Virou questão de segurança pública. Problema do Estado. Penas individualizadas e estádios mais seguros. 

Todo o futebol inglês se une em torno do desastre de Hillsborough. A imagem acima é uma homenagem do Manchester United, o maior rival do Liverpool


Os efeitos são nítidos. Três anos depois, a Premier League foi criada, os clubes aprenderam a criar novas formas de renda, torcedor passou a ser, também, consumidor, estrangeiros foram atraídos pelo dinheiro movimentado na Inglaterra, associado à competitividade do torneio, o que só cresceu nas últimas décadas. Os estádios, mesmo os mais antigos, se reformularam e uniram o charme à modernidade, se tornando modelos para inúmeras arenas espalhadas por todo o mundo. Hoje o Campeonato Inglês é visto no mundo todo, inclusive as divisões inferiores, e os clubes se tornaram marcas mundiais. Nem precisa de contar ou ir lá. Ligue sua televisão aos sábados e domingos e veja por si só.

A homenagem em Wembley: 96 lugares ocupados com cachecóis em um jogo do Arsenal

O tratamento dado à tragédia também ganhou uma forma única. Antes acusados, os torcedores se transformaram em vítimas do despreparo policial e da falta de organização do evento em Sheffield. Familiares se organizaram, pressionaram e inquéritos não param ser reabertos. A impunidade não ficou na conversa. A forma como os ingleses tratam o assunto é notável. No último final de semana, a FA separou 96 assentos no estádio de Wembley, onde Arsenal e Wigan jogaram pela FA Cup, e os cobriu com cachecóis do Liverpool. No estádio de Hillsborough, outros 96 lugares foram pintados de branco e receberam flores. Em todo o país, o que não faltaram foram homenagens. O jogo de 1989 durou seis minutos. Os jogos do último final de semana começaram com sete minutos de "atraso" em relação ao horário oficial. Nem mesmo o Everton, rival da cidade, deixa de homenagear os torcedores do Liverpool. Mostrei uma dessas ações no blog. Clique aqui para conferir. Um exemplo de como se mobilizar em prol do bem comum.

No último final de semana, 96 cadeiras do estádio Hillsborough ficaram assim

Não dá para tentar explicar aqui no blog a sensação de ter visitado o memorial em homenagem aos mortos no estádio de Anfield, em Liverpool. Um espaço que fica na rua, nos muros do estádio, com o nome de todos os que morreram em 1989, entre eles um primo de Steven Gerrard, uma chama eterna, replicada até hoje no escudo oficial do Liverpool, e diversas homenagens, como cartas, fotos, velas, camisas e tudo o que se puder imaginar. Plenamente respeitado, intocado. Alguns simplesmente tocam o local e tentam, por ali, passar algum tipo de energia e conforto para os parentes que sofrem até hoje não só com a perda mas com o doloroso processo judicial. Uma das melhores formas de evitar que se repita um mal é expor a memória, mostrar a todos o que não pode ser repetido jamais. E nesse quesito, o futebol da Inglaterra dá um show.


Memorial em Anfield: de arrepiar


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